Quando o sistema adoece: como estruturas tóxicas transformam líderes em vilões
- Redação GoHuman
- 19 de jun.
- 9 min de leitura
Culpar apenas a “liderança tóxica” pelo adoecimento mental no trabalho é “enxugar gelo”. O caminho para construir ambientes mais saudáveis passa por transformar as estruturas organizacionais responsáveis pelo sofrimento coletivo – inclusive dos próprios líderes
Você já teve um chefe que fazia seu domingo à noite virar um pesadelo? Aquela ansiedade que começa a crescer quando o fim de semana está acabando não é frescura, é seu corpo avisando que algo está errado no ambiente de trabalho.
Mas e se a gente disser que, talvez, a raiz do problema não seja a pessoa, mas o sistema em que ela opera?
Entender que é a lógica organizacional que adoece, e não apenas o comportamento de indivíduos, é o primeiro passo para identificar formas de mudar esse panorama.
Essa foi a provocação que norteou o segundo episódio do podcast GoHuman Talks. Nele, Alessandra Cavalcante, cofundadora da GoHuman, recebeu André Fusco, médico-psicanalista especialista em saúde mental no trabalho.
Juntos, eles exploraram as origens do que chamamos de “liderança tóxica”, abordaram estratégias para promover uma cultura saudável, explicaram o que é a psicodinâmica do trabalho, discutiram os desafios da nova NR-01 (que obriga todas as empresas a identificar e gerenciar riscos psicossociais) e apresentaram caminhos concretos para quebrar o ciclo de adoecimento nas organizações.
Neste artigo, nos aprofundamos em alguns dos tópicos abordados na conversa e trazemos dados e referências complementares para ajudar líderes e profissionais de RH a refletirem sobre como transformar a estrutura organizacional.
A partir do olhar da GoHuman, reforçamos que a transformação cultural passa, necessariamente, pelo fortalecimento da segurança psicológica e pelo desenvolvimento de lideranças mais conscientes. Afinal, enquanto procuramos culpados individuais para o adoecimento nas organizações, ignoramos que somos todos parte de um sistema que, muitas vezes sem perceber, transforma pessoas em números e liderança em controle.

“A boa saúde mental dos profissionais é uma das consequências de um ambiente psicologicamente seguro. Culturas em que profissionais podem se posicionar sem medo, as relações não são tóxicas e existe espaço para aprender e desafiar, impactam positivamente no bem-estar emocional dos profissionais”, reflete Alessandra.
O paradoxo da liderança tóxica
Alessandra Cavalcante abriu o GoHuman Talks #2 trazendo um dado que ajuda a entender o tamanho da responsabilidade que recai sobre quem lidera: um estudo global realizado pelo UKG Workforce Institute, em parceria com a Workplace Intelligence, entrevistou 3.400 pessoas de 10 países e revelou que 69% dos funcionários consideram que seus gestores influenciam mais sua saúde mental do que médicos (51%) ou terapeutas (41%) – impacto comparável ao de seus parceiros ou cônjuges.
Na visão de André Fusco, essa percepção faz sentido. Afinal, passamos cerca de um terço da vida adulta trabalhando – são aproximadamente 90 mil horas ao longo da carreira, segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Nesse contexto, ele destaca que não é exagero dizer que, para muitos adultos, o trabalho ocupa o lugar simbólico que a família tem na infância; “é onde buscamos pertencimento, segurança e reconhecimento”, avalia.
E no centro dessa experiência está o líder – figura que determina tarefas, aprova férias, define promoções, decide demissões e, muitas vezes, dita o clima emocional da equipe. Não surpreende, então, que as lideranças sejam frequentemente vistas como causa de sofrimento nas organizações.
Para o médico-psicanalista, porém, essa leitura pode ser tão comum quanto equivocada. “Muitos líderes considerados ‘tóxicos’ são, na verdade, vítimas de estruturas organizacionais adoecidas”, alerta.
Alessandra complementa lembrando que os líderes também estão adoecendo. “A liderança é o espelho da cultura – e, se a cultura está doente, o líder também está em sofrimento. Por isso, responsabilizar sem oferecer apoio e estrutura é perpetuar o ciclo de adoecimento”, analisa.
O que diz a psicodinâmica do trabalho

Para explicar esse paradoxo, André Fusco recorre aos estudos de Christophe Dejours, psiquiatra francês que criou o conceito da psicodinâmica do trabalho – um campo que investiga como a maneira de organizar o trabalho pode gerar sofrimento psíquico, especialmente quando impede as pessoas de dar sentido ao que fazem ou expressar seus limites.
Dejours analisou, entre outros fenômenos, a prática do trote universitário como forma de perpetuação institucional do sofrimento e identificou que, quanto maior o sofrimento dos alunos numa faculdade, maior a violência do trote.
Nas organizações, o padrão se repete. Líderes pressionados por metas inalcançáveis, ameaçados por rankings e expostos a julgamentos constantes transferem essa carga para suas equipes. Não por perversidade individual, mas por mecanismos psíquicos de adaptação ao sofrimento.
Por tudo isso, “responsabilizar o veterano sem buscar causa-raiz é enxugar gelo”, sintetiza o convidado do segundo GoHuman Talks. E Alessandra acrescenta: rotular líderes como vilões é perder de vista o que realmente precisa mudar. “Só mudamos o comportamento quando mudamos a estrutura que o sustenta. Portanto, a verdadeira questão não é identificar o líder tóxico, mas entender o sistema que produz toxicidade”, conclui.
Para pensar:
A Gallup estima que gerentes são responsáveis por pelo menos 70% da variação no engajamento dos funcionários. Porém, segundo o State of the Global Workplace Report 2025, apenas 27% dos gerentes estão engajados globalmente, o que compromete o desempenho dos times.
Na prática, líderes sobrecarregados, mesmo com boa intenção, enfrentam pressões de metas e performance, o que pode levá-los a adotar comportamentos autoritários, o que reforça o paradoxo: o sistema que cobra demais do líder é, muitas vezes, o mesmo que o transforma em tóxico.
Quando o sistema transforma pessoas
Se líderes reproduzem o sofrimento que vivenciam, a resposta para quebrar esse ciclo não é “corrigir” comportamentos individuais, mas transformar a lógica que sustenta a estrutura.
André Fusco compartilhou uma experiência como consultor de um grande banco brasileiro que enfrentava um problema recorrente e que ajuda a indicar caminhos possíveis para sair dessa enrascada...
Segundo ele, funcionários retornavam de licença médica pelo INSS e, pouco tempo depois, se afastavam novamente. Um ciclo de adoecimento silencioso – e caro.
A solução pensada parecia ideal: retorno gradativo, restrições formais e acompanhamento médico. Mas, na prática, não deu certo. O motivo? As metas atribuídas aos líderes desses colaboradores.
“Ô doutor, minha meta é quatro caixas. Quando chega um funcionário do INSS, minha meta passa a ser cinco. Só que ele tem restrições! Ou seja, minha capacidade não muda, mas a cobrança aumenta. E se eu não tiver um bom desempenho, posso ser mandado embora”, explicou um gerente.
Em resumo, o sistema transformava o acolhimento em risco. E gestores, mesmo bem-intencionados, acabavam pressionando funcionários vulneráveis – não por maldade, mas por sobrevivência.
A mudança veio com uma ação simples e estrutural: manter as metas inalteradas nesses casos. “Não oferecemos treinamento, não punimos, não realizamos um workshop sobre empatia”, conta Fusco. “Mudamos a estrutura – e isso foi suficiente para liberar as pessoas a agirem com a humanidade que sempre tiveram”, acrescenta.
Segundo ele, os reafastamentos caíram quase que imediatamente e os relatos de acolhimento aumentaram. “Nunca tive um gestor tão humano e acolhedor em toda a minha vida”, relatou um dos funcionários.
Esse caso ressoa com a filosofia da GoHuman. “Estou convencida de que só é possível gerar segurança psicológica e promover saúde mental se olharmos para os processos, que são o motor da engrenagem toda. Mesmo que a empresa não consiga se reestruturar completamente, pode utilizar o princípio de Pareto (80/20): identifique quais são os 20% dos seus processos que, se ajustados, podem gerar um ganho significativo em termos de melhoria do bem-estar emocional do time”, sugere Alessandra.
Além disso, a história mostra com clareza o que está em jogo com a nova NR-01, norma regulamentadora que acaba de entrar em vigor no Brasil em caráter educativo e que, a partir do ano que vem, obrigará todas as empresas a identificar e gerenciar riscos psicossociais – como assédio moral, metas abusivas, jornadas exaustivas e falta de pertencimento.
“Essa norma reconhece que o sofrimento no trabalho não é só consequência de fragilidades individuais. Muitas vezes, ele nasce das próprias regras do jogo”, resume a cofundadora da GoHuman.
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A meritocracia como fonte invisível de sofrimento

O episódio do GoHuman Talks também trouxe à tona uma estrutura invisível, mas profundamente enraizada nas organizações e que tem o potencial de causar prejuízos à saúde mental dos profissionais: a meritocracia.
Para André Fusco, essa lógica – vendida como símbolo de justiça – está entre as maiores fontes de adoecimento psíquico nas empresas. “É óbvia a perversidade desse sistema”, declara.
Ele explica a sua visão usando uma analogia desconfortável: “imagina que eu tenho dois filhos e, para um, dou boa educação, mesada, escolinha de esporte, alimentação saudável, plano de saúde de qualidade e amor. O outro, eu chamo para feedback: ‘filhão, vamos reagir? Olha seu irmão!’. Isso é meritocracia na família”, aponta.
No trabalho, a “meritocracia” se manifesta quando pessoas com perfis, talentos e ritmos diferentes são comparadas sob os mesmos critérios de performance, como se fossem peças intercambiáveis. O resultado? Competição, insegurança, medo.
Nesse ponto, entra em cena o conceito de segurança psicológica como antídoto possível para essas estruturas.
“Quando falamos em segurança psicológica, estamos falando da dinâmica das relações e de como essa dinâmica viabiliza a criação de espaços de diálogo e de autenticidade dentro das organizações”, explica Alessandra.
“Essa abordagem confronta diretamente culturas organizacionais baseadas no medo, na competição e no silenciamento. Em ambientes assim, o risco não está apenas em metas abusivas ou feedback inadequado, mas em sistemas inteiros que valorizam o desempenho acima do vínculo humano – como é o caso de práticas meritocráticas descontextualizadas, que desconsideram as diferenças de partida entre as pessoas e reforçam a lógica do ‘cada um por si’”, complementa.
O questionamento à meritocracia, aliás, é algo que vem ganhando força globalmente. O filósofo Michael Sandel demonstrou em A Tirania do Mérito como sistemas meritocráticos aumentam polarização e ressentimento social.
Da mesma forma, o Project Aristotle, do Google, descobriu que o fator número um para equipes de sucesso não era o talento individual (base teórica da meritocracia), mas a segurança psicológica – impossível de existir em ambientes de ranking e competição constante.
Pesquisas da Gartner, Gallup e Harvard Business Review confirmam os benefícios:
Organizações com alto nível de segurança psicológica apresentam 27% menos rotatividade, 76% mais engajamento, 50% mais produtividade, 74% menos estresse e 29% mais satisfação.
Profissionais ficam 57% mais dispostos a colaborar e 67% mais propensos a aplicar habilidades recém-aprendidas.
NR-01: a norma que exige mudanças reais na cultura organizacional

Nesse cenário, como reforça Alessandra, o desafio da NR-01 está justamente em reconhecer que muitos dos riscos psicossociais não estão nos indivíduos, mas na estrutura. E isso inclui crenças profundamente naturalizadas – como a meritocracia.
Ou seja, a atualização da NR-01 representa um avanço importante ao reconhecer que sobrecarga de trabalho, falta de autonomia, insegurança e violência psicológica são riscos ocupacionais tão graves quanto acidentes físicos e exigir que as empresas mapeiem, analisem e enfrentem esses fatores de forma estruturada.
Porém, tanto Fusco quanto Alessandra alertam que, se não olharmos para as causas reais do adoecimento, a norma corre o risco de virar só mais uma burocracia, e a superficialidade, um risco real.
“Muito mais do que aderir a campanhas específicas como Setembro Amarelo e a trends das redes sociais, as empresas precisam se preocupar em construir uma cultura acolhedora, que tenha a saúde mental e a segurança psicológica de seus times como prioridades estratégicas. Temos que criar espaços para que as pessoas possam falar sobre suas questões de saúde mental cotidianamente, possam compartilhar suas dores e ter um apoio efetivo”, recomenda Alessandra.
Afinal, nada muda se as metas continuarem inatingíveis, se o medo continuar sendo o principal estímulo e se a cultura seguir tratando pessoas como recursos descartáveis.
A GoHuman desenvolveu uma abordagem específica para essa questão. “Por meio de ferramentas e análises qualitativas, conseguimos identificar o estágio de segurança psicológica em que a equipe se encontra”, explica Alessandra. “Além disso, nossa metodologia aponta as oportunidades diárias que podem ser trabalhadas para a segurança psicológica evoluir naquele time. Aliamos essas informações e dados a processos humanizados, que envolvem a promoção de diálogos coletivos com o time e um trabalho de desenvolvimento individual dos líderes”, acrescenta.
Por fim, como reforça a cofundadora da GoHuman, o desafio é aproveitar essa oportunidade para questionar práticas naturalizadas (como metas abusivas, feedback inadequado e sistemas meritocráticos baseados em medo e competição) e lembrar que cuidar da saúde mental no trabalho não é apenas uma obrigação legal, é um convite para reimaginar a cultura organizacional e transformar estruturas que adoecem em ambientes de cuidado.
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E o futuro?
Em Bullshit Jobs, o antropólogo David Graeber aponta que criamos uma civilização onde 40% das pessoas acreditam que seu trabalho nem deveria existir. Enquanto isso, o burnout se tornou um “fenômeno ocupacional” oficial, segundo a OMS, e o Brasil lidera rankings de ansiedade. Nada disso é coincidência! Quando o trabalho perde o sentido e se torna fonte de sofrimento, toda a sociedade adoece.
A boa notícia é que, como Alessandra Cavalcante e André Fusco mostraram no segundo episódio do GoHuman Talks, é possível mudar estruturas e reverter esse panorama. A pergunta que fica é: de que lado dessa transformação você quer estar? Do que perpetua o sofrimento ou do que constrói ambientes onde pessoas podem ser integralmente humanas?
A GoHuman oferece diagnósticos de segurança psicológica, desenvolvimento de lideranças e consultoria para transformação cultural. Se sua empresa quer sair do ciclo de ‘enxugar gelo’ e transformar estruturas de verdade, entre em contato para agendar uma conversa sobre como podemos ajudar sua organização.
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